A Educação Infantil e a alfabetização.

A educação Infantil e alfabetização.

Um belo dia, seu chefe lhe informa que você terá que aprender a operar um novo software. Um programa novo, com códigos e linguagens absolutamente desconhecidos por você. Para aprendê-lo, há dois caminhos:

Ser colocado numa sala, para que alguém lhe transmita toda a teoria e a programação, através de aulas, exercícios, livros, trabalhos e provas.

Ou, fazer antes uma aproximação sua ao novo software. Isto é, circular pela empresa para entender os motivos de estarem implementando aquele novo programa. Descobrir por que ele é importante, qual contexto será usado, quais as enormes possibilidades que ele abrirá para você e para a companhia, quais recursos ele oferece, onde você pode pesquisar mais, quem já trabalha com ele, com quem você pode trocar conhecimentos etc. Só então, depois de situado, envolvido e familiarizado, inicia-se o aprendizado formal do software.

Analisemos as duas opções. A primeira é um aprendizado passivo. Você está fechado numa sala recebendo um bocado de teoria, provavelmente entediado, perguntando-se o porque de ter que aprender tudo aquilo, achando que a chefia só inventa, e, louco para sair e tomar um café.

Na segunda opção, você entra na sala com vontade de aprender. Teve a oportunidade de visualizar o amplo horizonte que o novo programa abrirá na sua carreira e está curioso e engajado em explorá-lo. Quer compartilhar com os amigos, conversar sobre ele em casa, pesquisar na internet, comprar livros sobre o assunto.

Na educação infantil, muitas escolas ainda ensinam como a empresa que força o funcionário a aprender algo que ele não sabe para que serve. Ensinam a "ler e escrever" contando com um conhecimento prévio que a criança não possui. Ignoram que o mundo "letrado e numerado" tão familiar aos adultos, é desconhecido aos pequenos. Enfiam-nos na sala e tascam desenhos de letras, caligrafia, cópias e ditados sem que nada disso faça muito sentido na cabecinha deles.

Uma boa escola de educação infantil não foca seu trabalho na alfabetização. Porque sabe que as crianças pequenas são perfeitamente capazes de aprender letras, números e palavras, mas tem uma enorme dificuldade em uni-los atribuindo significados. Isto é, elas enxergam tijolos, janelas e telhas. Mas não visualizam a sala.

Por isso, a boa escola não perde tempo alfabetizando antes da hora. Porque é um aprendizado sem significado. O foco é dado a coisas mais essenciais para a infância (mas que nem sempre fazem tanto sucesso entre os pais): sociabilização, psicomotricidade, a exploração de sons, cheiros, cheiros, sensações e de tudo o mais que o brincar oferece.

Voltando ao exemplo do software, a boa escola preocupa-se em fazer a aproximação da criança com o mundo da escrita, deixando-a pronta e com vontade de receber o aprendizado formal, que acontecerá no ensino fundamental.

E para que isso não aconteça de forma entediante e impositiva, são desenvolvidas atividades lúdicas, divertidas e fantasiosas envolvendo textos e cálculos. Receitas de culinária, registros de explorações no jardim, a divisão de um bolo de chocolate, cartas endereçadas a super heróis ou ao melhor amigo, contagem dos pontos de jogos, leitura de contos, elaboração de roteiro de teatro, histórias em quadrinhos, brincadeira de escritorinho, visitas a feiras e mercados etc.

Escrevo isso em resposta a uma pergunta muito interessante que me foi enviada recentemente. Diante de um filhote visivelmente mais adiantado que a turma, os pais vivem o dilema de adiantá-lo ou não, pois no ano que vem fará o último ano da educação infantil e temem que ele se desestimule "quando um dos objetivos é escrever as primeiras palavras", coisa que o garoto já faz. E concluem perguntado se devem sacrificá-lo agora para evitar que ele sofra no futuro.

Numa escola cujo foco não seja alfabetizar e sim aproximar as crianças das imensas possibilidades da escrita, não faz diferença que uns sejam mais adiantados que os outros. Pelo contrário. Esse contato entre os desiguais é favorecido e permite uma troca muito rica de conhecimento entre as crianças. Um estimula o outro e todos crescem juntos.

Além disso, supondo que a criança seja mesmo bem mais adiantada que os demais, normalmente, esse adiantamento se dá em apenas uma área. Nas demais, ela é tão pequena como as outras. Ao ser adiantada, que recursos terá com os maiores em situações de conflitos? Conseguirá se impor ao grupo como um igual? Será tão hábil como os maiores nos times de futebol? E quando começarem os jogos sexuais, os namoricos? Não será incentivado precocemente para isso? Para que forçá-lo a atender as exigências de lição de casa, de ficar sentado copiando e realizando exercícios, quando sua maior vontade ainda é brincar?

Só para exemplificar, na sala do meu caçula, que está no último ano do infantil, há um garotinho que sempre se mostrou mais adiantado. Quando eles eram muito pequenos e desenhavam apenas rabiscos, ele já desenhava figuras humanas, com dedos, roupas e dentes. Hoje ele já lê e escreve. Comparado ao meu filho que, aos 6 anos, só escreve o próprio nome, ele estaria muito a frente em termos de domínio da escrita. Mas, nos demais aspectos é um menino idêntico ao meu. De vez em quando, ainda escapa um xixi nas calças, faz manha quando contrariado, é imaturo na resolução de conflitos. Se os pais dele fossem avaliar apenas os aspectos intelectuais, talvez o adiantassem. Mas, conhecendo o menino, tenho certeza que seria um erro em todos os demais aspectos. Ele acompanharia a nova turma intelectualmente. Mas teria que se esforçar além da conta para acompanhá-la emocionalmente.

Meu conselho aos pais que enviaram a pergunta permanece o mesmo do texto "Crianças adiantadas na escola": não adiantem seu filho.

Não é a série que vocês devem questionar e sim os procedimentos da escola. Alfabetizar crianças tão pequenas, dar ditado, evitar a troca entre elas, é muito, muito pouco! Seu filho, definitivamente, merece mais. Mas não será adiantando-o um ano que ele obterá aquilo que precisa para se desenvolver na sua plenitude.

Conversem com a escola para que, no novo ano, eles tenham um olhar cuidadoso para que ele não se entedie e peça que eles desenvolvam outras atividades além da escrita. Mais lúdicas, mais brincalhonas. Mais infantis.

E mantenham-se firmes. Sem ansiedade. Logo ele estará mais crescido, lidando com diversos conteúdos e as diferenças não serão mais tão acentuadas. A infância passa rápido. Defendam a do seu filhote com unhas e dentes! O restante virá naturalmente, no tempo e na idade certa.


Obs: Este texto contou com a consultoria da Telma Vinha, docente da Faculdade de Educação da Unicamp, autora do livro "O Educador e a Moralidade Infantil", co-autora do livro "Quando a escola é democrática", minha irmã queridíssima e responsável por muitos dos palpites que dou por aqui.


Comentários

Cristine disse…
Olá Tais,

Excelente artigo sobre a alfabetização e a motivação. Quanto a adiantar a criança de série, falo por experiência própria: não façam isso.

Eu já estava alfabeizada no segundo ano de pré (isso em 1970)e meus pais, aconselhados pela diretora e a professora, me passaram direto para a segunda série após um mês na primeira série.

Eu conseguia acompanhar as aulas, mas sempre fui posta de lado pelos colegas, e levei alguns anos para conseguir me enturmar. As crianças são cruéis!

O que se ganha no desenvolvimento intelectual não compensa os problemas emocionais e sociais que a criança enfrentará. Melhor deixar que cada fruto amadureça no seu tempo.

Grande abraço!
Letícia Volponi disse…
excelente texto... quando coloquei a laura no berçário fiz inúmeras perguntas e além da alimentação fantástica, a segurança de admitir uma bebê prematura e que tinha apenas três meses, fiquei encantada com a proposta pedagógica que leva em conta a alfabetização gradual por meio dos contos de fadas. to muito satisfeita e jamais adiantaria ela nem por um mês...
Hegli disse…
Acabei de debater este assunto no blog da Rosely Sayao e é impressionante o numero de pais que acha que o filho quer saber mais, tem interesse e por isso julga-os preparados para iniciar o ano letivo adiantado.

Não consigo compreender essa ansiedade em enfiar a criança em meios aos cadernos e cargas de responsabilidade e tarefas antes da hora.

Assim como o seu caçula Tais, o meu entrou com 6 anos no 1 ano sabendo só o nome e em 3 meses já estava escrevendo e lendo livrinhos por vontade propria, desvendando aquele mundinho fantastico dos codigos, e foi assim, num click.

É o unico da turma dele que entrou no segundo ano com 7 anos completos e fez 8 em abril. Mas além de acompanhar todo o conteudo sem esforço, ainda a a parte emocional, a segurança em saber que consegue aprender e fazer as tarefas sem ter que frequentar o reforço e sem se sentir intimidado por ser tão mais novinho como alguns colegas da sala.

Mas como já disse umas mil vezes aqui, sou a unica máe a pensar assim por aqui e ainda sofro muito preconceito e cobrança das pessoas pela escolha que fiz (e faria novamente, quantas vezes fossem necessarias)...
Acho que por isso adorei tanto o depoimento da Cristine e a frase que ela cita: "O que se ganha no desenvolvimento intelectual não compensa os problemas emocionais e sociais que a criança enfrentará. Melhor deixar que cada fruto amadureça no seu tempo". PER FEI TO!
Unknown disse…
minha mãe não quis me adiantar tb, pulando a 1a série. Achei ótimo... Se já sou uma perdida hoje, tentando achar meu lugar e minha tribo....
Realmente a preocupação maior hoje é de formarmos profissionais preparados... Mas e seres humanos preparados? Será que o melhor não seria formar os últimos, pq consequentemente serão bons profissionais tb...
Bjoks
Paula
PS: vc tb é formanda em educação como sua irmã?
Silvia disse…
Taís, eu ia mencionar os exemplos que já vi também. Não só na sala dos nossos caçulas, mas na da G também houve caso assim. No Infantil IV, já lia feito gente grande. Nem por isso ficava entediada nas aulas.

E, se tem a turminha que lê cedo, tem também a turminha que faz contas de cabeça sem nenhum esforço. Também vi isso na sala da G. Nem por isso os pais dessas crianças acharam que tinham que adiantá-las. Aliás, já vi mais pais preocupados em "atrasar" do que adiantar as crianças, e sempre com resultados muito positivos.
Diva disse…
Esse texto será “guardado”, para me ajudar nas muitas conversas que tenho com alguns pais, que insistem em adiantar seus filhos.
Defendo essa ideia com “unhas e dentes”, no que depender de mim, essas crianças terão direito a infância.
Tenho lutado para convencê-los...e a grande maioria (pais) tem refletido e mudado de opinião...QUE BOM!!!!!

Um beijo carinhoso!
Tais Vinha disse…
Como a Cristine, eu também fui adiantada. Do pré na escola particular pulei pro segundo ano da pública. Para mim, nunca houve medo. Mas cresci "me achando". Mais inteligente, mais sabichona que os demais. Diferente. E eu acabei me cobrando demais. Como se houvesse a necessidade sempre de ser um destaque, de ter a aprovação dos outros. A vida foi se encarrengando de me mostrar que eu era igual a todo mundo. Às vezes de uma forma amigável, outras com uns tombos que doeram bastante. Mas sobrevivi pra contar, né?

Hegli, engraçado, imaginaria que o público da Rosely Sayão teria outra visão do assunto. Mas a Sílvia disse bem, hoje já tem muito pai e mãe revendo este conceito de que adiantar é melhor. Você não está sozinha, flor! E algumas escolas estão mais cuidadosas também. Principalmente com o ciclo de 9 anos, que gerou muita confusão.

Esse negócio de ficar entediado, só em escola chata, não? Por que como se entedia uma criança numa sala cheia de atividades legais, pintura, cantinhos, teatro, jogos, pesquisas, explorações...duvido que elas prefiram ficar preenchendo texto em folha de papel, quando há diversidade de escolha e coisas divertidas pra fazer. Pelo contrário.

Letícia, fiquei curiosa, como é a alimentação da sua pituca na escola?

Paula, ri muito com a sua "perdição". Eu tb me perco muito. Ultimamente, cada vez mais.

Bjs!
Renata Rainho disse…
No colégio eu não percebia tanta discriminação pelos alunos qu eforam adiantados mas na faculdade a coisa ficou feia.

Teve gente que entrou com 16 anos. Já teve o problema de escolher a profissão mais cedo que o "normal", daí chega na facul tem vários problemas que vão desde não tem como viajar, dirigir, assim como arrumar estágio.

E quando os problemas são resolvidos vem os outros, a pessoa não tem maturidade, realmente tem que se pensar.
Uma coisa é saber ler / escrever, outra é a maturidade da idade. Seja ela dos 6 anos ou dos 20!

bj e um ótimo natal
Vanessa disse…
Oi Tais,

Gostei muito do texto.

Tenho pensado muito sobre tudo que envolve a vida escolar já que tenho uma filha de 2 anos, que ainda não vai à escola e estou grávida de 7 meses.

Recentemente escrevi para o blog Mamíferas sobre o que penso da alfabetização precoce e do uso de sistemas apostilados nas escolas.
O link é http://mamiferas.blogspot.com/2009/11/alfabetizacao-precoce-e-educacao-copia.html

Abs,

Van
Unknown disse…
TaVi, já estou carente... Cade vc? rsrsrs
Unknown disse…
nossa, acho que tô carente mesmo...
Mas nào podia deixar de comentar...
vc está no escreva lola escreva, no concurso de blogueiras, com o post do risoto...
Que orgulho!!!!

http://escrevalolaescreva.blogspot.com/

Bjoks
Paula
tais Vinha disse…
Faculdade com 16 realmente é crítico. Eu entrei com 17. Passei a maior parte do curso no barzinho em frente ao Teatro Zácaro, no Bexiga. Bons tempos, mas de conteúdo mesmo, apenas como se faz uma boa caipirinha. Depois emendei um mestrado nos EUA que fiz por fazer (ganhei bolsa). Não tinha LOÇÃO do que eu estava fazendo. Hoje vejo que eu não tinha mesmo era maturidade. Acabei conquistando-a no mercado de trabalho.

Vanessa, adorei teu texto. Me inspirou a escrever sobre apostilas. Pode?

Paula Carente, hoje eu também estou! Mas sem tempo de escrever. Amanhã vou republicar um texto natalino. Acho que não mata sua carência, mas cumpre. hehehe.

E este concurso?!! Nossa, fiquei se achando. E tem cada coisa boa, mulher! Como vc fuça! Vou dar a dica dele aqui no blog. O tema "Maternidade" interessa a todas nós.

Bjs!
Olá Taís.
Cadê o lula que não te nomeia Ministra da Educação!!
É incrível a valorização da alfabetização precoce.
Dias atrás conversando com o diretor da escola de meu filho passou um aluno por nós e ele me disse que o menino passou na prova de admissão do ensino fundamental de um renomado colégio. Fiquei abismada pois não sabia que havia prova para crianças nessa faixa etária. A prova em si consistia em um ditado de 5 palavras.
A escola não quer ter o trabalho de alfabetizar a criança? Não entendi. Além do que, uma escola que classifica as crianças entre as que escrevem e as que não escrevem, como se elas se resumissem a isso. Fiquei passada.
Bonito deve ser explicar para a criança que ela não vai estudar ali porque não passou na prova....
Eu ainda não sei onde vou matricular meu filho, mas já sei onde não vou.
bjs.
Tais Vinha disse…
Oi Marcia, jura que tem escola fazendo isso? Mas será que eles podem? Ditado pra admissão no fundamental?!!! Como diz o Bóris, "é uma vergonha!". Isso é em São Paulo? Sei de uma escola na minha cidade que exige alunos totalmente alfabetizados e com domínio da letra cursiva no segundo ano (que era o primeiro antes). Quem não chegou lá, tem que fazer reforço a tarde. Para mim é surreal. Vc disse bem, a escola não quer ter trabalho de alfabetizar. E quem sofre são os pequenos. Imagina ter que ir pra reforço por algo que é perfeitamente natural na idade. Nós pais, devemos fugir de tais instituições.

Bjs!
Silvia disse…
Taís, pois lá no Rio, na escola onde fiz o antigo científico (Ensino Médio), tem prova concorridíssima pra entrar pro primeiro ano. Horas de provas para crianças que estão saindo do Infantil. Eu acho um absurdo, tem gente que gosta. Tem uma amiga da Giovanna que fez e passou, e os pais estão muito satisfeitos com a escola. Também acho que tem um pouco do estilo dos pais e do tipo de criança. Ela é competitiva, gosta de estudar, está bem adaptada na escola.

Mas eu não faria nenhuma filha minha passar por isso. A menina saiu da prova com dor de cabeça.
Vanessa disse…
Tais,

Pode não, DEVE...rsrss
Quanto mais falarmos no assunto melhor.

Bjs,

Vanessa
marcia disse…
Oi Tais.
Essa escola é em São Paulo sim e cobra uma mensalidade exorbitante.
Pra mim, isso é um pouco reflexo dos anseios dos pais. Tou cansada de encontrar mães que falam: "Ah, a escola da minha filha é maravilhosa, com 4 anos ela já sabe escrever", ou seja, as escolas estão oferecendo aquilo que os pais querem...(boa parte deles pelo menos)
Bjs.