O cisco e a trave.





O cisco e a trave. 


Um israelense me contou sobre a vida dos árabes em território judeu: "A gente está se lixando para o que eles fazem entre eles. Não estamos nem aí se eles se espancam, se matam, se acabam. Se é entre eles, nossa polícia não se mete. Não perdemos tempo com esse povo. Eles não são gente, são animais."

Fiquei chocada com a sinceridade do relato. E, com um ufanismo que geralmente nos acomete quando nos afastamos da pátria amada, pensei que pelo menos nesse assunto o meu País estava acima do dele.

Foi Cida, empregada doméstica crescida na periferia de Osasco, que me fez ver que, enquanto eu apontava para o cisco no olho do meu amigo israelense, deixei de ver a trave enterrada até o fundo do meu.

Estávamos preparando o almoço quando a cozinha foi invadida pela campanha contundente da Rádio Bandeirantes pelo fim da maioridade penal. Vinha com a chancela do próprio governador de São Paulo, defendendo a mudança na lei.

Cida para de lavar a louça, olha pela janela e solta: 

"Engraçado…na favela sempre aparece um morto. É tiro no peito, na cabeça, queimadura, estrangulamento…ninguém liga. 

Morri de pena desse moço que foi assassinado na porta do prédio por causa de um aifone. Você viu na televisão?! Ele já tinha dado o celular pro bandido. Imagina matar alguém por tão pouco! Mas na favela, a vida vale menos ainda. O irmão do meu marido foi assassinado por causa de cento e cinquenta reais. E a polícia nem investigou. Até hoje não sabemos quem matou. 

Eles estão querendo reduzir a idade pra ir preso, mas do jeito que está, pode abaixar pra dezesseis anos que nós vamos ver os de quinze dando tiro. E se reduzir pra quatorze, vamos ver os moleques de doze dando tiro. Daqui a pouco, vamos colocar criança na cadeia e o problema vai continuar. 

No jornal de domingo eles botaram as fotografias dos rapazes que foram assassinados por menor de idade. Só puseram dos bairros de rico. Se fossem colocar os mortos da favela, ia encher tantas páginas que não ia sobrar espaço pras notícias. 

Eu tenho muito respeito e entendo a dor que a mãe desse moço deve estar sentindo, mas ninguém apareceu pra entrevistar minha sogra quando o Cláudio morreu. Ninguém fez passeata pelo fim da violência. O governador e a rádio não pediram pra mudar lei nenhuma. Foi só mais um favelado que morreu assassinado. 

Parece que a gente é bicho." 

O feijão nesse dia não ficou tão gostoso. Talvez fosse melhor continuar cega.


Comentários

Anônimo disse…
Verdade!

http://jardimlivros.blogspot.com.br/
Priscila Blazko disse…
Nossa.
É isso mesmo.
E aí, o pior é achar que o israelense acaba sendo menos pior que a gente só porque não é hipócrita...
Dureza.
Abraço,
;)
Sonia disse…
Esse texto teve uma reação muito curiosa. Só dois comentários. É realmente um assunto que não queremos enfrentar.

Tenho certeza, absoluta certeza, que acontecem muito mais crimes no nosso território do que em Israel. Escutei ontem no rádio que dezenas de pessoas morrem assassinadas por mês em São Paulo. Não confirmei os dados, mas só o moço filho de classe média alta teve o nome e a indignação divulgadas. Os outros são estatística. E por acaso eles não tem mãe? Não tem filhos? Alguém que os ame?
A indignação deveria ser direito de todos.
É ilusão acharmos que podemos ignorar tamanha violação e vivermos em paz.
Nunca haverá paz desse jeito.
Julio Sales disse…
Sou contra a redução da maioridade penal por entender que não irá resolver nem diminuir a escalada da violência. A responsabilidade é do poder público, que sempre investe nos efeitos e não nas causas. Deveria haver uma legislação capaz de punir o descaso das autoridades quando se trata de inclusão de crianças e jovens.
Anônimo disse…
Sou contra a redução da maioridade penal por entender que não irá resolver nem diminuir a escalada da violência. A responsabilidade é do poder público, que sempre investe nos efeitos e não nas causas. Deveria haver uma legislação capaz de punir o descaso das autoridades quando se trata de inclusão de crianças e jovens.
Natalie disse…
Muito pertinente e correto o raciocínio da Cida, inclusive em relação a não se resolver o problema baixando a maioridade penal.
Mas parece que a mídia e a classe média, que frequentemente se esforçam muito para ignorar a realidade, que é mais complexa do que gostariam, já elegeram novo inimigo público: o ECA.
Estou equivocado ou você faz poemas em forma de crônicas? Ou crônicas em forma de poemas?

*-*

Nathalia Alves disse…
Oi. Acabei de encontrar o seu blog e adorei seus textos. Eu não sou mãe, tenho apenas 21 anos, mas sou, de certa forma, prima do Victor Hugo, o rapaz que foi assassinado por um ~aifone~ (não era um Iphone, era um celular simples).
Eu queria esclarecer só uma coisa que estou há 7 meses tentando esclarecer para muitos, e faço isso em nome da família, do Victor, em meu nome, enfim, em nome de todos que estão cansados da violência. Veja bem, estanmos cansados da VIOLÊNCIA, não da violência da classe média, da violência com os donos dos Iphones, etc. Estamos cansados com a violência na educação, na saúde, nas comunidades (eu moro na periferia de São Paulo, Zona Leste, Itaquera, sei bem do que falo), enfim, a violência em geral.
Eu não posso falar pelo nosso Governador, mas falo pela família do Victor e pela minha, que, se não encabeçou essa luta pela redução na maioridade penal, ajudou a dar voz a isso!
O real intuito dessa luta é que PESSOAS PAREM DE MORRER POR CELULARES, POR CENTO E CINQUENTA REAIS, POR DEZ REAIS (uma das familias que se juntaram a nós teve o filho morto por 10 reais, acredite!), PELA FALTA DE DINHEIRO (como foi o caso da dentista que foi queimada e torturada por não ter dinheiro suficiente para os assaltantes).
Estamos nessa luta por PESSOAS, por gente, por famílias, e não por classes. Em que momento foi dito: PESSOAL, A LUTA SE RESTRINGE APENAS A QUEM PODE BANCAR UM IPHONE, MORADORES DE FAVELAS, FAVOR, SE RETIRAREM? Nunca!
Eu sou estudante da USP, e fiz um apelo lá, pedi por ajuda. Disseram que duvidavam que tinha alguém da periferia e algum negro na manifestação. Bom, da periferia tinha mais da metade dos participantes, tirando os curiosos que queriam só uma instagrada na coisa, o resto era periferia! De negros tinha uma família inteirinha lutando contra a descriminação que o pai desta família sofreu, o racismo, e por isso, foi morto. Eles estavam lá, ajudando a gente. De favelados, tinham muitos, pelo mesmo intuito, amigos e pessoas mortas todos os dias nas comunidades, nas favelas, nas ruas, por nada, simplesmente por nada, e o que nós fizemos? Demos as mãos e fomos, juntos, contra a violência!
Quem MUITO nos criticou, nunca deu uma ajuda, uma solução melhor, era sempre: TEM QUE MELHORAR É A EDUCAÇÃO. Mas é OBVIO, e estamos atrás disso TAMBÉM. Mas e quem nos criticou?
Muito foi dito: SE FOSSE POBRE NGM LIGARIA. Não mesmo, nossa sociedade é podre com relação à isso, mas NÓS LIGAMOS, nós ajudamos, e ajudaremos. E quem criticou?
Nosso motivo inicial foi o nosso amor enorme pelo Victor Hugo, mas isso se juntou a vontade de que brancos, negros, ricos, pobres, tenham uma vida digna. Tentamos usar para algo bom essa visibilidade ridicula que a midia dá apenas pra quem tem um pouco mais, vamos usar isso pra algo positivo, horas. Melhorias na educação é o ponto inicial de tudo, mas não podemos tapar nossos olhos pra injustiça brasileira. Ninguém aqui quer enfiar milhares de menores de idade em jaulas, ou largá-los com outros enjaulados maiores de idade. JAMAIS isso deve ser feiro. Queremos apenas que as coisas sejam justas, pras famílias que estão em sofrimento, e querem justiça em nome dos que amam e partiram, e pros que precisam pagar pelo que fizeram, de modo que entrem em uma prisão, e não saiam revoltados e piores do que entraram! Espero ter esclarecido novamente um pouquinho de tudo mais uma vez.
Se tiver alguma duvida, futuramente surgirá o Instituto Victor Hugo Deppman, que tem como objetivo levar amor e alegria pra quem precisa, familias necessitadas, famíliar que perderam entes queridos, crianças carentes, etc. Fazer O BEM, apenas isso!
Desculpa vir numa postagem tão antiga comentar, mas espero que tenha esclarecido algo. Parabéns pelo blog. Espero que a pessoa que trabalha com voc~e em sua casa, um dia possa sentir, através do nome do Victor, que a vida dela também é querida por nós, e por ela também faremos justiça! Um beijo grande ;)