A ética que vem do berço.





A ética que vem do berço.

Quando eu e meus irmãos éramos pequenos, me lembro de ouvirmos com frequência histórias sobre atitudes honestas e dignas por parte dos adultos que eram referências na nossa vida.

Tinha a do meu avô, pobre, cheio de filhos, que retornou a pé ao mercado para devolver a moeda que veio a mais no troco, porque "jamais aceitou ficar com o que era do outro". 

Mecânico dos bons, nunca deu muito certo financeiramente. E até mesmo o seu "fracasso", nos foi transmitido como lição de vida: "sempre foi empregado e quando tentou montar oficina própria não deu certo porque era honesto demais e passaram a perna nele. Morreu pobre, mas com a consciência tranquila".

Me lembro do dia que fui fazer compras com minha avó numa tradicional loja da cidade. Depois de escolher a mercadoria, ela se dirigiu ao caixa para pagar. O valor era alto e ela pediu para fazer um crediário. Chamaram o dono, que deu uma esnobada, mas no final cedeu, dizendo que, como ela era "parente do Fulano", ia lhe quebrar o galho. Na mesma hora, ela devolveu as compras dizendo: "Muito obrigada, mas não quero mais fazer negócio com o senhor. Quem está lhe pedindo crédito sou eu e não o Fulano, meu parente. O Fulano nunca pagou uma conta para mim. Se eu tenho o nome limpo eu garanto que não é por causa dele. Até logo". Pegou na minha mão e saiu da loja de mãos vazias e cabeça erguida. 

Médium conhecida, minha avó era procurada por gente de todo tipo, atrás de um conforto espiritual.  Ouvíamos com frequência a parentada contar que não importava o dia ou a hora, ela sempre os atendia. E nunca, jamais, aceitou dinheiro, até quando um "homem muito rico colocou uma carteira na mão dela". "Não posso cobrar pelo trabalho que é dos espíritos", dizia minha avó.

Me lembro da minha mãe, a Rainha do Cheque Pré, afirmar com orgulho quando batia o desespero do final do mês: "Ai...estou no vermelho de novo. Mas nunca um cheque meu voltou e não vai ser agora que vai voltar. Se tem alguém conhecida por honrar seus compromissos esse alguém sou eu". E lá ia ela fazer seus malabarismos para manter o crédito e a honra.

Tinha também o causo da prima que aceitou um emprego para ganhar o dobro e quando percebeu que tinha rolo, pediu demissão na hora: "prefiro ficar desempregada do que ganhar bem sabendo que estou sendo conivente com trambicagem".

Da nossa segunda mãe, a empregada que há 45 anos trabalha para nossa família, veio a lição contada com lágrimas nos olhos: "Quando eu tinha 16 anos e estava com minha filhinha bebê no colo, uma 'madama' me perguntou se eu dava a bebê pra ela. Eu mandei-a segurar a minha filha e abrir o cueirinho dela. Pedi para ela olhar se a nenê tinha rabo ou pelo, porque se tivesse era bicho e bicho a gente dá. 'Fio' a gente passa até fome, mas cria."

Os casos errados também eram contados, mas de uma forma que viravam aprendizado. O primo que deu golpe no pai e quase o matou de desgoto. O tio que faliu porque quis dar o passo maior que a perna. O parente que ficou rico às custas do suor alheio. 

Esses causos da minha infância me voltaram à memória, recentemente, ao ler um texto sobre a formação da personalidade ética. Numa sabedoria apenas intuitiva, os adultos da minha vida fizeram algo que mais tarde virou teoria: na formação das crianças é preciso haver uma correspondência entre cumprir normas e sentir-se bem. É preciso transmitir-lhes orgulho em agir de acordo com os princípios éticos e morais.

É essa satisfação interna que as motivará, mais tarde, a fazerem aquilo que julgam correto, independente de elogios de terceiros, bônus na folha de pagamento ou pontinhos positivos na caderneta do professor. Também não precisarão de inspetor, câmera ou marronzinho do DSV porque, quem se sente bem em fazer o que é certo, se autovigia. E se auto-respeita. 

Piaget, um dos teóricos citados no texto, complementa que faz parte dessa formação levar as crianças à reflexão sobre o que acontece quando não se cumpre as regras necessárias para a vida em sociedade (os causos errados que citei).

Claro que os pequenos ainda terão um longo caminho até se formarem seres éticos e morais. E que há muitos outros fatores além da família interferindo nessa formação: sociedade, escola, mídia, amigos, a própria personalidade. Como afirma Piaget, os valores morais se formam com a interação da pessoa com os diversos ambientes que ela atua. Mas o orgulho de ser correto, quando vem do berço, sem dúvida ajuda a criar um alicerce sólido para que essa construção seja firme.

Obs.: Após a leitura do texto, passei a me lembrar de transmitir mais aos meus filhos os ensinamentos dos meus antepassados. Cuidando para que também seja de maneira natural e temperada com exemplo, amor e história. Até ler Piaget, confesso que não lhes dava o devido valor. 

Imagem: Illustration Friday: Roots 





Comentários

Priscila Blazko disse…
Isso aí, Tais. Ótima reflexão.
Mas e a referência do texto que vc citou? Seria legal deixar indicado...
Há um livro muito bom chamado "Ética para meus pais", de Yves de La Taille.
Faz uma comunhão com seu texto, embora seja a partir de uma visão contrária a que traz seu post (de filho para pai).

A propósito, dia desses, lemos durante uma reunião de professores na escola onde leciono um texto de uma pesquisadora chamada Telma Vinha. Mesmo sobrenome que vc e ideias tão parecidas com as suas... é sua parente? Gostamos muito e a leitura do texto foi bastante produtiva, apesar de, em alguns momentos, algumas colocações irem contra a pedagogia da nossa escola. Mas assim que é bom, né?
Abraço.
Priscila.
Tais disse…
Oi Priscila! Tô faz tempo para escrever no seu blog. As coisas andam corridas por aqui...mas dessa semana não passa. Li seu texto, viu...

A Telma é minha mana. E devo a ela muito do que sei hoje. O texto que citei é dela. Sou uma leitora bem preguiçosa de textos teóricos (confesso) e este texto li para fazer um trabalho para ela. Além de irmã, de vez em quando ela é minha patroa. Por conta desse frila, acabei lendo e me encantei com as teorias apresentadas. O Yves tb é citado no texto e quase coloquei uma frase dele. Não me senti a vontade de citar a autoria do texto porque ia parecer confete demais pro meu lado. Se vc tem lido os comentários nos últimos textos, não tô com essa bola toda. Mas vc matou a charada no primeiro comentário! Rs! Se quiser, te mando o texto por email. Será que é o mesmo que vcs estudaram?

É maravilhoso quando nos deparamos com teorias que vão contra o que praticamos ou acreditamos. Nos levam à reflexão. As coisas de vez em quando precisam de um chacoalho. Um beijão, garota!
Luana disse…
É Tais, o grande problema dos adultos de hoje, pelo menos da maioria deles, é que essa transmissão de valores não é feita de forma natural através de histórias e atitudes, mas apenas de forma oral, através de palavras, que ao meu ver, não significam nada se atrás não vier a emoção. E crianças são muito perceptivas.

Ando tão descrente do mundo que acho que os casos contados hoje em dia são tirados de livros que ditam regras e condutas para mães e pais ( que por sua vez estão totalmente perdidas com tanta informação) e não da vida real. São livres de emoção e principalmente de orgulho. Talvez até porque os princípios éticos e morais quase nem existam mais.

Credo. Ando muito descrente mesmo. Acho que quem ta precisando de uma dose desses causos sou eu, pra lembrar que existe sim gente decente, de bom caráter e que acima de tudo, orgulha-se disso.

Beijoca,
Luana
Tais disse…
Pessoal, escrevi DST ao invés de DSV (o depto. de trânsito de São Paulo). Ato falho como diria o homem do charuto. Bom, aproveito para dizer que que se auto-regula usa camisinha... hahahahahaha! E evita DST. Vou arrumar o texto. Valeu, Silvia! Bjs!
Tais Vinha disse…
Ô Luana, te entendo sabia...eu fiquei num dilema qdo. escrevi este texto, se ia falar dos estímulos contrários: do orgulho de ser bonito, vestir marcas, ganhar dinheiro, subir na vida a qq custo e milhares de etc. Mas decidi que estes todo mundo conhece de cor e salteado. Precisamos mesmo é ressaltar o bom e velho fio do bigode, a tal da vergonha na cara, o homem de palavra, o sujeito de caráter...essas coisas que a gente sempre ouvia e valorizava. Fica descrente, não, que ainda tem muita gente boa no mundo. Mas elas são mais quietinhas e aparecem menos. Como disse o texto, é gente que se basta com aquilo que acredita e não fica anunciando para receber as glórias (como as blogueiras fazem, rs!). Sim, os pais estão perdidos. Mas logo a gente se encontra e dessa perdição toda vai surgir um novo caminho. Tenha fé, bichinha! Bjs!
Luana disse…
Anunciar coisas boas ainda vá lá, mas o problema é mesmo o que você citou. O orgulho vem hoje do poder aquisitivo que se tem, da quantidade de coisas que se compra, do corpo cultuado, do desprezo ao próximo.
Credo credo credo.

Também teria saído um ótimo post, mas resgatar histórias do seu passado me fez resgatar histórias do meu passado, e ai como isso é bom.

Confesso que nunca pensei, assim como você, sobre transmitir valores e ensinamentos através de acontecimentos vividos por mim. Talvez porque isso nos seja inato, nénão?
E quando tentamos organizar muito, daí já não é mais natural e espontâneo. E mais uma vez as crianças percebem!

Beijoca
Bianca disse…
Thaís, adorei seu post. Me fez colocar um sorriso na cara e pensar com meus botões que há 12 anos estou seguindo algum caminho certo na arte de educar. Sabe que após ler seu post percebi que tb ando dando pouco valor a esses ensinamentos. Vou voltar a utiliza-los, rs. Bjs
Paula disse…
Concordo com você. Os valores familiares são imprescindíveis para o direcionamento da formação humana. Ações concretas e exemplos passados ensinam através da experiência, mas, além disso, a manutenção dos ritos familiares (tomar a benção, comemorações,...) também contribuem para um estreitamento nas relações entre os membros da família, facilitando a transmissão e assimilação de valores.
Abraços,
Hegli disse…
Comovente sua descrição... me fez lembrar de "causos" da minha família e da minha infância, ai ai!

Parabéns Taís, mais uma vez!

Bjus
Fernanda disse…
Oi Taís, você me fez lembrar de um episódio da minha infancia.Eu e minha irmã, juntamente com minha mãe, entramos em uma loja de departamento para fazermos compra, enquanto minha mãe escolhia as mercadorias , fomos ao setor de bijuterias e "pegamos" um colar com um pingente de menininha. Saimos da loja e fomos passear em um parque próximo. No parque minha mãe percebeu algo que ela não havia comprado e que estava em nossas mãos; deu uma bronca enorme, disse que não deveríamos fazer mais isso, mas não nos fez devolver a mercadoria ( acho que ela ficou com vergonha de voltar a loja). Hoje percebo que não podemos apenas "dar lição de moral", mas devemos completar com a ação para que o ensinamento seja completo.
Priscila Blazko disse…
Claro que eu quero o texto!
Vou te mandar um email solicitando-o.
Obrigada pelo retorno!
Beijo.
Olá Tais,

Acho imprescindível essa "contação de causos" familiares.

Mas fiquei com a impressão ao ler os "causos" de que ética e sucesso financeiro não andam de mãos dadas.
Parecem ser coisas incompatíveis.

Beijos
Marcia Taborda disse…
Olá,

Compartilhamos um link para esse post no Portal da Escola Virtual para Pais, ok?

Marcia Taborda
http://www.escolavirtualparapais.com.br
Tais Vinha disse…
Oi Bianca, história de antepassados são sempre deliciosas. Temos mesmo que inclui-las na vida dos nossos filhos. São presentes do passado. Bjs!
Tais Vinha disse…
Oi Paula, concordo! Criar filho perto de parentes, na minha opinião, é mais fácil. Compartilhamos ensinamentos e carinho. As coisas boas se expandem (com x?). E dão o norte. Bjs!
Tais Vinha disse…
Hegli, causos de família são maravilhosos. Dava pra criar um blog só deles, não?
Tais Vinha disse…
Fernanda, coitada da tua mãe. Queria ensinar as filhas, mas não queria expô-las. Dura a escolha. Vou perguntar aos universitários qual seria o melhor caminho. Eu acho que faria eles me entregarem e eu mesma daria fim. Não sei. Meus filhos são pequenos. Ainda não chegamos lá. Mas sei de uma parenta adolescente que roubou uma bobeirinha qualquer numa loja nos EUA, qdo. fazia intercâmbio, e foi deportada. Me diga se era para tanto? O excesso de punição também é ruim. Imagina o quanto ela se torturou durante anos depois do evento! Bjs
Hegli disse…
Oi Taís, vendo o "causo" da Fernanda me lembrei de um outro que a advogada da empresa que eu trabalhava me contou.
A filha dela, com seus 6 anos, pegou uma bala (do tipo TicTac) no caixa do supermercado e colocou no bolso. Quando chegou em casa e foi descarregar as comprinhas a mãe viu a bala e entendeu o que tinha acontecido.
Chamou a menina e pegou o ticket do mercado para conferirem as compras. Como foi constatado que a bala nao estava lá, ela disse a menina que a bala nao havia sido cobrada então não era devido ficar com ela, ou devolveriam ou pagariam por ela.
Elas voltaram ao mercado e foram falar com o gerente que precisavam pagar pela bala que havia ido "por engano". E sabe o que o gerente fez (mesmo entendendo o que havia acontecido e diante daquela mãe aflita por ensinar a filha sem constrangê-la)????
Deu a bala de presente para a menina...
Essa colega ficou uma arara. O fez cobrar e mandou a menina ficar na fila para pagar pela balinha.

Essa historia ficou marcada na minha cabeça, pela coragem da mãe em dar uma lição assim que notou o que tinha acontecido e pela imbecilidade do gerente em permitir um roubo e ainda ser cumplice, querendo dar a garota um produto que tb não era dele.
O fim né!?
Bjus
Tais Vinha disse…
Adriana, ri muito do seu comentário. Só tinha gente dura na minha família...rs! Óbvio que com a gente, sucesso financeiro não andava de mão dada com a ética, pelo simples fato que ninguém tinha dinheiro. Era uma dureza mesmo. De ter que mudar as pregas puídas da saia do uniforme para que uma pudesse passar para a outra no ano seguinte. Ou comer pão com molho de tomate pq não tinha mais nada na despensa da casa com 14 pessoas.

Claro que há ética e moralidade no sucesso financeiro, e como!, mas isso nunca fez parte do meu passado. O maior valor que minha turma tinha era a honra. E sabe que era um povo tranquilo e desapegado? E que viviam contando piada e rindo da vida. Foi uma infância maravilhosa. Bjs!
Tais Vinha disse…
Oi Hegli, vc vê como educar tem muitas variáveis! A gente planeja e na hora tudo muda. O gerente tentou botar panos quentes e sem querer piorou a situação. Eta tarefinha difícil essa nossa. Bjs
Tais Vinha disse…
Oi Marcia, que legal! Muito obrigada! Nós pais de hoje temos muito a aprender com os pais do passado. Os métodos deles podiam ser antiquados, mas sem dúvida eles sabia transmitir valores que hoje estão confusos. Um beijão.
Nine disse…
Oi Tais! Seu texto vem de encontro ao que eu penso e a como me sinto. Por que temos que nos sentir orgulhosos de cometer uma infração? Não deveria ser o contrário?

Infelizmente a realidade está longe de fugir desta regra, creio até que antigamente o senso moral era mais apurado. Também tenho muitos exemplos desse tipo na família, mas hoje em dia...

Eu trabalho com a lei e tento não fugir às regras, dar jeitinho, mas eu e meu marido somos minoria tanto no trabalho quanto na família.

Pior que temos doutores em direito na família, policiais, voluntários sociais...ninguém sai por aí cometendo crimes, não se trata disso, mas cometendo pequenas infrações, como por exemplo, comprar CD/DVD pirata, roupa falsificada, usar a lei para os outros e não aplicá0la para si.

No meu trabalho vejo muito disso. Hoje quem é influente acha que pode mais e que a lei não se aplica a sua pessoa. Canso de ver juizes, desembargadores, parentes desses "se achando" por aqui.

Mas seguimos firmes. Vou remando contra a maré, fazendo a minha piracema no intuito de deixar meus ovos para que lá na frente, no futuro da minha filha, ela veja nascer um mundo melhor!

Beijos,
Nine
Tais Vinha disse…
Nine, que lindo este seu comentário! Podia virar texto. A Piracema foi uma ótima analogia, mesmo porque ela não ocorre com os peixes nadando contra a correnteza? Obrigada! Um beijão.