A observadora de mísseis.




A observadora de mísseis.

Conheci Dalal em Tel Aviv. Não sei bem sua idade. Mas é idosa e caminha com uma certa dificuldade, arrastando suas pantufas calçadas sobre meias para varizes, que vão até o joelho.

Dalal não se cobre, porque é árabe cristã. Nasceu e cresceu na região e foi testemunha de todas as suas transformações, desde a ocupação inglesa na Palestina até a formação do Estado de Israel. 

Conta que seus olhos já viram muita coisa. Guerras, revoltas, atentados, terrorista sendo arrastado vivo em motocicleta, terras tomadas e famílias apartadas. Viu a chegada dos judeus, com seus hábitos estranhos de gente que vem de terras ainda mais estranhas. Viu chegarem os etíopes e suas mulheres de rosto fino e tatuado. Viu nascer árvore onde era deserto e cidades em locais onde nem as ovelhas queriam pastar.

Se um dia os judeus fossem embora, Dalal diz que iria com eles. Diante da minha surpresa ela explica que prefere a vida daquele jeito. Diz que antes era muito difícil, muita bagunça e que em sessenta anos eles fizeram um país onde se pode andar na rua, com água, eletricidade, seguro social...Dalal olha longe e dá de ombros.

Não sei se ela repetiria essa afirmação para os da sua comunidade. Mas, definitivamente, sua confiança nos israelenses não se reflete na comida. Dalal não come nada industrializado e cozinha tudo do zero, de preferência, só com ingredientes árabes. Ela curte azeitona, faz iogurte, assa berinjelas para o babaganush, depois rega com azeite de oliva palestino que compra em garrafas pet de um mercador do bairro. Só bebe café “arabic” aromatizado com grãos de cardamomo e que nunca é coado.

Em algumas ocasiões, Dalal tocava nossa campainha e nos presenteava com um pratinho com quatro delicados charutinhos de folha de uva, um pires de picles de nabo e couve flor. Noutras, era um potinho com três pequenas esfihas e uma deliciosa porção de molho de tahine perfumado com limão siciliano. 

Quando a perna doía muito, pedia que minha irmã lhe fizesse uma massagem, enquanto isso lhe ensinava truques de culinária, como colocar um pouco creme de leite para fermentar junto com o iogurte para torná-lo mais cremoso, ou que temperos secos deviam ser guardados no freezer para manter o aroma e o sabor. Depois nos servia uma porção de kibes, que ela pronuncia kube.

Aos poucos, fui descobrindo que Dalal perdeu um filho de trinta anos, de câncer de pulmão. O moço nunca havia fumado, mas o pai dele sim. O marido de Dalal sempre fumou muito, até dentro de casa, e manteve o vício mesmo depois da morte do rapaz. O esposo faleceu há um ano e Dalal hoje vive sozinha. 

Fiquei sabendo, recentemente, que quando soam os alarmes antimíssel e a cidade toda corre para os abrigos, Dalal vai pra varanda. E fica olhando para o céu querendo ver onde o míssel vai cair.

A cena me faz sorrir. Penso que no fundo, Dalal quer que o mundo exploda. Talvez por ser a única coisa que seu olhar ainda não viu.


Comentários

Anônimo disse…
Tá, que delícia de estória. Adorei a Dalal. Cada um com seu jeito de levar a vida né?
BJ Rex
lili disse…
Que texto delicioso!Fiquei desejando uma continuação.
Zulmira disse…
Lindo relato. Obrigada pelos momentos de beleza que o seu texto nos proporcionou.