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O criado-mudo.

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A mãe mexe no celular quando o filho, rapazola, se aproxima: “Mãe, o que é isso?” Ela responde sem olhar: “Isso o quê?” O moleque bufa: “Isso! O que é isso que achei na gaveta do seu criado-mudo?!” A mãe levanta os olhos e vê o garoto lhe apontando um objeto. Ela responde calmamente, sem mudar de expressão: “Um vibrador. Você sabe o que é isso.” O menino arregala os olhos: “E o que isso está fazendo na sua cabeceira?" A mãe ergue uma sobrancelha e, incorporando a diva de cinema mudo, devolve calmamente: “Você quer mesmo que eu te explique?” O adolescente franze o rosto com asco: “Ai...que nojo! Você é minha mãe! Eu não estou pronto para saber dessas coisas.” A mãe estica a cabeça e faz cara de quem não está entendendo: “Bom, se você não está pronto, por que mexeu no meu criado-mudo? Não sabe que em criado-mudo de mãe não se mexe? Criado-mudo é zona proibida. Você procurou e achou. Agora seja mocinho e lide com esse ...

A escola na sala de jantar.

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Ontem, só ontem, enquanto assistia ao filme Hannah Arendt, um pensamento me invadiu fino e fundo, como uma agulha de tricô e me virou o estômago e a mente: eu sei pouco, muito pouco ou quase nada sobre o nazismo. Um dos maiores crimes da atualidade contra a humanidade, com 6 milhões de pessoas sistematicamente assassinadas, e o que sei sobre o processo que levou uma sociedade dita civilizada a cometer tamanha atrocidade? Nada. O pensamento é talvez o mais rápido download que existe. Na mesma hora me conectei com a escravidão. Milhões de seres humanos arrancados de suas vidas e transportados como gado para servir de mercadoria. E o que sei realmente sobre esse fato, suas causas e consequências no mundo em que vivo? Praticamente só o que aprendi nas novelas das seis da Globo. Foi difícil continuar prestando atenção no filme. Vendo Hannah dar aula, refletindo de maneira tão aprofundada com os alunos sobre a natureza humana, me ocorreu que estudei numa escola estadual ...

“Professora, e seu eu te chamasse de vadia?”

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A sala do sétimo ano estava dispersa e, no meio da confusão, um garoto chama um grupo de alunas de vadias. Elas ficam muito indignadas e procuram a autoridade presente: a professora. A professora não dá bola. Negócio de criança, coisa da idade. A indignação aumenta. As meninas ficam ainda mais exaltadas e alguns garotos resolvem sair em defesa delas: “Ô profa, o moleque chamou elas aqui de vadias! Você não vai falar nada?!” A professora olha com cara de quem está cansada daquilo tudo e diz: “Depois vocês resolvem isso...lá fora no intervalo.” É quando um dos meninos a interrompe dizendo: “Profa, depois?! E se fosse eu que te chamasse de vadia? Você ia querer resolver agora ou depois?” O episódio ilustra bem como a construção da ética e do respeito nas relações ainda é uma realidade distante nas nossas salas de aula. E como a indignação do adulto é tratada com muito mais atenção do que a infantil ou juvenil. Na visão de muitos educadores, um conflito só ...

A Lista de Schindler escolar

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Algumas escolas pedem que os alunos elaborem um “sociômetro” quando é necessário mesclar diferentes turmas. A proposta, teoricamente, é muito simpática: cada criança elabora uma lista com 4 amigos. Essa lista serve para ajudar os educadores a montar as novas turmas, garantindo pelo menos um ou dois amigos por criança nas novas classes para que ninguém mude de turma sozinho. Tudo muito lindo, certo? Só que não. O que era para ser apenas um guia, acabou se transformando numa tortura infantil. Crueldade pura. Conversei com uma educadora que já estudou o sociômetro. Ela defende que a ferramenta seja usada, desde que não se revele aos estudantes o objetivo: “Pessoal, vamos falar sobre a amizade...sobre a importância dos amigos na nossa vida...blá, blá, blá...agora vamos escrever o nome de amigos queridos....”. E assim, as crianças elaboram as listas com sinceridade, sem saber o real propósito da atividade. Sacanagem com as crianças? Não. A educadora explica que um dos motivo...

Pré-esposa

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Mozão, Eu sei que você até hoje não entende porque fico tão brava quando você dá uma “pré” nas tarefas que dividimos na casa. Imagino que realmente seja difícil lidar com meus surtos toda vez que você encara uma pia cheia de louça suja e, vinte minutos depois afasta-se, deixando-a ainda repleta de louça para lavar: “Dei uma pré-lavada”. “COMO ASSIM PRÉ-LAVADA?!”. “Ué, dei uma enxaguada pra depois ficar mais fácil.” “FÁCIL PRA QUEM? ”. Você engasga e a louça começa a voar. Ou quando você tira a roupa lavada da máquina e ao invés de pendurá-la, faz uma pilha de roupa molhada sobre o varal de chão, no inovador módulo pré-pendurada. Espano também com as pré-varridas. As varridinhas onde passa o padre, “um quebra galho até alguém dar uma varrida mais profissa.” Mas reconheço que meus pitis pré e pós-arrumação fazem um mal danado ao nosso casamento. Você fica magoado, achando que eu não reconheço sua participação. Eu fico irada, me sentindo uma otária. Então, para acabarmos ...

Tijolo nos dentes

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Tijolo nos dentes O menino se aproxima: “Mãe, você sabia que o Mc Pedrinho, Mc Brinquedo e o Mc Pikachu estão sendo processados?” A mãe franze a testa. Não tem a menor ideia de quem são Pedro, Brinquedo e Pikachu. Mas cumpre à risca seu papel de mãe interessada. “Jura?! E por quê?” “Porque eles tem doze anos e trabalham. Dão show às três horas da madrugada, acredita? E cantam umas músicas muito nada a ver.” “Como assim nada a ver?” “Ah, mãe…coisa de sexo…posso cantar? Você não me dá bronca?” “Pode.” O menino respira fundo e canta meio titubeante, sem fazer contato visual, “Roça, roça o peru nela que ela gosta…” “Que horror! E onde você escutou isso?” “Mãe, todo mundo escuta. O Fulano, meu amigo, canta o tempo todo. Na frente da mãe dele e até da professora!” A mãe arregala os olhos: “Da professora?!” “É, ela deu a maior bronca. Mas é ele, né, mãe. Eu não faço nem morto, porque sei que você me quebra!” A mãe franze a testa, de novo. Ia ...

Linda

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Ela era feia.  Tinha um rosto judiado e pernas curtas e finas que pareciam mal encaixadas sob a barriga larga. O sorriso exibia dentes escurecidos, talvez por café ou cigarro. O cabelo preso atrás mostrava a raiz pedindo tinta. A pele exibia vincos do tempo e da vida. Conversamos rapidamente no intervalo de um curso de pães caseiros. Me contou que fazia o curso para começar a vender pães e aumentar a renda. Disse animada que fazia de tudo para viver. Artesanato com bisqui, lembrancinha para batizados e casamentos, arte em feltro, bijuteria e até unha e cabelo no pequeno salão de beleza montado na garagem de casa. Contou que também costurava roupinhas de boneca e nessa hora seus olhos brilharam…adorava recuperar as bonecas que as amigas e vizinhas lhe traziam. Dava banho, passava condicionador no cabelo, maquiava, punha roupa nova, sapatinho, tirava manchas de caneta. Sua última restauração foi uma Dorminhoca linda, que agora fica em cima de sua cama e ni...

Piolhinha

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Piolhinha A classe dos pequenos padecia com uma infestação de piolhos.  Todos os esforços que estavam sendo feitos para resolver o problema pareciam ser em vão. A escola mandava bilhete, os pais tratavam, os piolhentos eram afastados alguns dias e devolvidos sem sequer uma lêndea, mas logo os bichinhos voltavam a atacar sem piedade o couro cabeludo da meninadinha. A mãe não aguentava mais. Sua filha parecia que tinha néctar para atrair piolho. Era mandar pra escola que voltava coçando a cabeça.  Resolve tomar uma atitude. Ela era muito boa nisso. Encontra a professora na porta da sala e, num momento privado, dispara: - Escuta, não é possível isso que está acontecendo! Com certeza tem um foco, alguma criança que a mãe não está tratando. Quem é? A professora olha para um lado, olha pro outro e solta num cochicho:  - A Fulaninha. Você sabe, a mãe dela é supernatural. Tipo super mesmo…não gosta de produtos químicos e se recusa a passar qu...

"Ensina-me a proibir"

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"Ensina-me a proibir" Nas escolas e universidades da idade média, tocadas pela Igreja, um conselho de padres e bispos se reúne e decreta: “está proibido o uso dos livros nas salas de aula. Com os livros, nossos alunos se distraem, não prestam atenção, tem acesso a conteúdo inapropriado, compartilham um conhecimento que muitas vezes desconhecemos. Com os livros, perdemos controle.” Mudem a cena para 2015, coloquem os tablets e celulares no lugar dos livros e não é difícil concluir que estamos vivendo a mesma situação.  Enquanto algumas escolas estão incorporando as tecnologias portáteis no seu dia-a-dia, outras estão proibindo seu uso dentro dos muros. Não pode nem no intervalo e nem na saída. O motivo é praticamente o mesmo dos educadores medievais: medo da perda do controle. Aí vem a reflexão: tablets e celulares estão aí e ninguém mais duvida que vieram pra ficar. A internet também está aí e em breve será tão onipresente que as próximas gerações não cons...

Sair do armário é libertador.

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Sair do armário é libertador. Assumir que você vai votar num candidato do PT não é fácil. A pressão contrária é imensa. As pessoas na sala de jantar presumem que por você estar ali, comendo o que eles comem, vestindo o que eles vestem, bebendo do mesmo vinho, você também tem que pensar igualzinho.  Qualquer questionamento gera desconforto e, muitos simpatizantes da estrela vermelha, pelo bem do encontro, preferem escutar a conversa em estado “Ohmmmmmm”, sem se manifestar.  Confesso que essa tem sido eu em muitos pleitos e rodas sociais. Mas dessa vez, escancarei. Saí do armário, mostrei quem sou, liguei o foda-se.  “Vou votar na Dilma!” E o que aconteceu a seguir foi incrível. Alguns amigos se afastaram. Tudo bem, não eram amigos. Outros se aproximaram. Ueba, a fila andou e com gente bem mais interessante. Alguns discordaram com todo respeito. Continuamos amigos e nossa amizade ganhou transparência e um carinho sincero. ...

O diploma de datilografia

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O diploma de datilografia. Abriu uma pasta com documentos antigos e se deparou com um diploma meio amarelado, de papel encorpado e pequenas trincas nas bordas. No cabeçalho, em letras pomposas, estava escrito “Diploma de Datilografia”. Pegou uma xícara de chá, sentou-se e deixou que viessem as recordações. Estava na sexta série quando a mãe a matriculou no curso de datilografia da Dona Cidinha. Lembrou-se da sala cheia de máquinas Remington, das pilhas de papel jornal que eram aos poucos preenchidas com linhas infinitas de A [espaço] Ç [espaço] S [espaço] L [espaço] D [espaço], dos dedinhos magros que voltavam para casa doloridos e sujos de tinta. Na família era regra que os filhos fizessem o curso de datilografia quando chegassem ao ginásio. Exigência dos pais para que eles se preparassem para o futuro.  Ironia.  O futuro virou presente, o mundo deu mais voltas que as bobinas de fitas preta e vermelha das máquinas de escrever e o curso tão impo...

Barrado no shopping

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Barrado no shopping Ontem, meu filho foi barrado na entrada de pedestres do Shopping Vale Sul, em São José dos Campos. Ele estava sozinho. Assim mesmo, o vigia colocou as mãos em seus ombros e disse que ele não ia entrar porque ali não podia “rolezinho”. Meu filho, indignado, respondeu que aquele era um espaço público/privado e que ele tinha direito de ir e vir. Pediu então que o vigia chamasse o jurídico do Shopping para resolver a questão. Na mesma hora, o guarda pediu desculpas e o liberou. E eu, pra variar, fiquei com a pulga. Meu filho foi barrado porque é adolescente, andava a pé e usava touca.  Depois foi liberado, certamente, porque o vigia identificou no modo dele falar que ele não pertencia à categoria “moleque da perifa”. Me pergunto o que teria acontecido se ao invés de cobrar seus direitos ele tivesse dito: “Qual foi, guardinha?!”, ou “Libera ae, tiozinho!”.  Gestores do Vale Sul, por favor me respondam: onde, na Constituiçã...